Interceptação telefônica: quando a Justiça escuta (até o que não queria)
- Eduardo Onofri Pallota
- 12 de mar.
- 9 min de leitura

Em um mundo cada vez mais conectado, onde grande parte da nossa comunicação ocorre por meios eletrônicos, a interceptação telefônica tornou-se uma ferramenta investigativa crucial para a elucidação de crimes. Porém, este instrumento poderoso caminha em uma linha tênue entre a eficácia da persecução penal e a proteção de direitos fundamentais dos cidadãos. Neste artigo, exploraremos os aspectos legais da interceptação telefônica no Brasil e abordaremos situações inusitadas que podem surgir neste contexto.
O que diz a Constituição Federal
Em seu artigo 5º, inciso XII, estabelece que:
É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.
Este dispositivo constitucional consagra o direito à privacidade e ao sigilo das comunicações como garantias fundamentais de todo cidadão brasileiro. No entanto, também prevê a possibilidade excepcional de quebra do sigilo das comunicações telefônicas mediante autorização judicial e para finalidades específicas de investigação criminal ou instrução processual penal.
Requisitos para a Interceptação Telefônica, segundo a Lei n. 9.296/96
A Lei n. 9.296/96 regulamenta o dispositivo constitucional e estabelece os requisitos para a realização legal de interceptações telefônicas. São eles:
Indícios razoáveis de autoria ou participação em infração penal: devem haver elementos mínimos que indiquem a participação do investigado no crime;
Crime punido com reclusão: a interceptação só é permitida para crimes cuja pena seja de reclusão (por exemplo, roubo, tráfico de drogas, homicídios e organização criminosa), excluindo-se os delitos punidos com detenção;
Observação: esse requisito é bastante criticado pela doutrina, especialmente, para o delito de ameaça, quando praticado no âmbito da violência doméstica e familiar, uma vez que essa infração penal tem a pena de detenção, logo, na situação em que uma mulher que é ameaçada pelo ex-marido, por ligações, a polícia não poderá efetivar a interceptação, ainda que haja autorização judicial.
Necessidade da prova: a interceptação deve ser imprescindível para a investigação, não podendo a prova ser obtida por outros meios disponíveis, ou seja, precisa ser demonstrado que com outras modalidades probatórias não é possível obter a comprovação;
Delimitação do objeto da investigação: a interceptação deve ter objeto específico e bem delimitado;
Autorização judicial fundamentada: a decisão do juiz deve ser devidamente fundamentada, indicando os motivos que justificam a medida excepcional; e,
Prazo máximo de 15 dias: poderá ser realizada por até 15 dias, prorrogáveis por igual período, desde que comprovada a indispensabilidade do meio de prova.
Modalidades de captação das comunicações
Interceptação Telefônica
É a captação da comunicação telefônica por um terceiro, sem o conhecimento dos interlocutores. Exige autorização judicial e segue os procedimentos da Lei n. 9.296/96.
Escuta Telefônica
Ocorre quando um terceiro capta a comunicação com o conhecimento de um dos interlocutores, mas sem o conhecimento do outro. Também exige autorização judicial e segue os procedimentos da Lei n. 9.296/96.
Gravação Telefônica (ou Clandestina)
É realizada por um dos interlocutores da conversa, sem o conhecimento do outro. Por não envolver a quebra de sigilo por um terceiro, não necessita de autorização judicial e não se submete à Lei n. 9.296/96. A única exceção em que haveria ilicitude se dá no caso em que a conversa era amparada por sigilo (ex: advogados e clientes, padres e fiéis). Pode servir como prova não criminal.
Observação: a palavra "clandestina" é empregada não no sentido de "ilegal", mas, sim, de feito ocultamente.
Com relação às espécies abaixo, como são realizadas em espaços públicos, como ruas, praças e estabelecimentos comerciais abertos ao público, geralmente são consideradas lícitas, pois não há expectativa razoável de privacidade nesses ambientes.
Interceptação Ambiental
Consiste na captação de comunicação ambiental (conversa entre presentes) por terceiro, sem o conhecimento dos interlocutores. A captação é válida, não se aplica a Lei n. 9.296/96 e não é necessária autorização judicial, exceto se se tratar de conversa íntima, pois nesses casos a ordem judicial é necessária não pelo fato de se tratar de uma comunicação telefônica, mas em razão do direito constitucional à intimidade. Pode servir como prova não criminal.
Escuta Ambiental
Ocorre quando um terceiro capta a conversa ambiental com o conhecimento de um dos interlocutores. A captação é válida, não se aplica a Lei n. 9.296/96 e não é necessária autorização judicial, exceto se se tratar de conversa íntima, pois nesses casos a ordem judicial é necessária não pelo fato de se tratar de uma comunicação telefônica, mas em razão do direito constitucional à intimidade. Pode servir como prova não criminal.
Gravação Ambiental (Clandestina)
É realizada por um dos interlocutores da conversa, sem o conhecimento dos demais. A captação é válida, não se aplica a Lei n. 9.296/96 e não é necessária autorização judicial, exceto se se tratar de conversa íntima, pois nesses casos a ordem judicial é necessária não pelo fato de se tratar de uma comunicação telefônica, mas em razão do direito constitucional à intimidade. Pode servir como prova não criminal.
Serendipidade
O que é a serendipidade na interceptação telefônica?
A serendipidade vem do inglês serendipity que significa procurar um coisa e achar outra, por vezes, mais valiosa da inicialmente procurada. Também é conhecida como "descoberta fortuita" ou "crime achado". Ocorre quando, durante uma interceptação telefônica legalmente autorizada para investigar determinado crime e determinada pessoa, são descobertos elementos relacionados a outro crime ou a outra pessoa não mencionados na autorização judicial inicial.
Interceptação como prova de crime/suspeito descoberto por acaso
A doutrina entende que pode ser utilizada, desde que o crime ou a pessoa descobertos fortuitamente tenham relação com o crime para o qual foi autorizada a interceptação. Caso não haja conexão, a interceptação só servirá como notícia de crime para as autoridades, em relação ao delito/pessoa descoberto fortuitamente.
Porém, os Tribunais Superiores possuem posicionamento no sentido de a interceptação telefônica poder ser utilizada como prova do crime descoberto fortuitamente, mesmo que não haja conexão com o crime objeto da investigação, pois a lei não exige essa conexão.
Interceptação telefônica para contravenções penais ou crimes punidos com detenção
A Lei n. 9.296/96 é clara ao proibir, em seu art. 2º, inciso III, a interceptação telefônica quando "o fato investigado constituir infração penal punida, no máximo, com pena de detenção". Portanto, como regra geral, não é possível a utilização da interceptação telefônica para investigar contravenções penais ou crimes punidos com detenção.
No entanto, surge o questionamento: e se, durante uma interceptação validamente autorizada para investigar um crime punido com reclusão, forem descobertos elementos relacionados a uma contravenção penal ou a um crime punido com detenção?
Nesse caso, a jurisprudência tem adotado as seguintes posições:
Conexão com o crime original: Se a contravenção penal ou o crime punido com detenção tiver conexão ou continência com o crime punido com reclusão que estava sendo investigado, a prova poderá ser validamente utilizada (serendipidade de primeiro grau) - exemplo: inicialmente, foi autorizada interceptação para apurar o crime de tráfico de drogas, porém, no transcorrer da captação, descobriu-se que os investigados praticavam o jogo do bicho (contravenção penal).
Ausência de conexão: Se não houver conexão, a tendência é considerar a prova ilícita para esse fim específico, já que a lei veda expressamente a utilização da interceptação telefônica para esses delitos menos graves.
O crime de realizar interceptação sem autorização judicial
A Lei n. 9.296/96, além de regulamentar a interceptação telefônica legal, tipifica como crime a conduta de realizar interceptação sem a devida autorização judicial ou ou com objetivos não autorizados em lei.
Importante destacar que a pena prevista para este crime (reclusão de dois a quatro anos, e multa) é considerável, demonstrando a preocupação do legislador em coibir violações ilegítimas à privacidade e ao sigilo das comunicações.
Além da responsabilidade penal, a realização de interceptação sem autorização judicial pode gerar responsabilidade civil (dever de indenizar) e, no caso de agentes públicos, responsabilidade administrativa.
Análise de Situações Inusitadas
1. Interceptação ambiental em cela de presídio
A instalação de equipamentos de captação de áudio e imagem em celas de presídios suscita importantes debates jurídicos. O STF tem entendimento de que a medida é lícita, desde que haja autorização judicial fundamentada e seja indispensável para a investigação criminal.
Contudo, deve-se respeitar a proporcionalidade e a razoabilidade, evitando a violação da dignidade dos presos. A medida não pode ser utilizada de forma genérica e indiscriminada, devendo estar relacionada a investigações específicas. Importante ressaltar que mesmo em situação de restrição de liberdade, os presos mantêm outros direitos fundamentais, como a dignidade e a privacidade mínima.
2. Gravações (ambientais e telefônicas) feitas ou autorizadas pela própria vítima do crime
A jurisprudência brasileira tem consolidado o entendimento de que são lícitas as gravações realizadas por um dos interlocutores, sem o conhecimento do outro, especialmente quando a gravação é feita pela vítima como forma de obter prova do crime que sofreu.
No caso emblemático HC 91.613/MG, o STF decidiu pela licitude de gravação ambiental realizada pela vítima de concussão para comprovar a exigência de vantagem indevida por agente público. O entendimento é que não há violação da intimidade quando um dos interlocutores decide registrar a conversa, sobretudo para documentar a prática de crime contra si. Ficou entendido que se trata de uma situação de legítima defesa.
3. Gravações em espaços públicos
Gravações realizadas em espaços públicos, como ruas, praças e estabelecimentos comerciais abertos ao público, geralmente são consideradas lícitas, pois não há expectativa razoável de privacidade nesses ambientes.
A instalação de câmeras de vigilância em locais públicos não requer autorização judicial. No entanto, a captação de áudio em espaços públicos pode suscitar questionamentos quando direcionada a conversas específicas. Em regra, gravações de imagens em locais públicos são admissíveis como prova, mas a captação direcionada de áudio pode exigir autorização judicial, dependendo do contexto.
4. Gravação ambiental pela polícia para obter confissão
Situação: um delegado interrogou um suspeito e disse que, se ele entregasse os comparsas e o produto do crime, estaria livre de qualquer investigação; o investigado deu todos os detalhes do crime, entretanto, toda essa conversa foi gravada.
A prova é completamente ilícita, pois o que o delegado fez foi um interrogatório clandestino, sem as garantias constitucionais e legais.
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça, no AREsp n. 2.123.334/MG, relatado pelo Ministro Ribeiro Dantas e julgado pela 3ª Seção em 20/6/2024 decidiu que:
A confissão extrajudicial somente será admissível no processo judicial se feita formalmente e de maneira documentada, dentro de um estabelecimento estatal público e oficial. Tais garantias não podem ser renunciadas pelo interrogado e, se alguma delas não for cumprida, a prova será inadmissível. A inadmissibilidade permanece mesmo que a acusação tente introduzir a confissão extrajudicial no processo por outros meios de prova (como, por exemplo, o testemunho do policial que a colheu).
5. Interceptação das comunicações telefônicas do advogado
A interceptação das comunicações telefônicas do advogado é tema sensível que envolve o sigilo profissional, garantido pelo Estatuto da Advocacia (Lei n. 8.906/94). Como regra geral, as comunicações entre advogado e cliente são invioláveis.
No entanto, o STF já decidiu que é possível a interceptação telefônica do advogado quando há indícios de seu envolvimento direto na prática criminosa, não como defensor, mas como coautor ou partícipe do crime. Nesse caso, o advogado não está atuando no exercício da profissão, mas como suspeito da prática delitiva.
Importante destacar que as conversas captadas que digam respeito exclusivamente à relação cliente-advogado e que não tenham relação com o objeto da investigação devem ser descartadas, não podendo ser utilizadas como prova.
6. Utilização pela polícia, sem ordem judicial, dos números registrados no telefone apreendido
A jurisprudência tem entendido que, havendo apreensão legal do aparelho telefônico (com mandado de busca e apreensão ou em situação de flagrante delito), a polícia pode acessar os dados nele armazenados, incluindo a agenda de contatos, sem necessidade de nova autorização judicial específica.
O STF, no HC 91.867/PA, considerou lícito o acesso pela polícia aos registros telefônicos e chamadas contidas em aparelho celular apreendido no momento da prisão em flagrante. O entendimento é que, uma vez apreendido legalmente o aparelho, o acesso aos dados nele armazenados é consequência natural da apreensão.
No entanto, para a interceptação das comunicações futuras com esses números encontrados, será necessária autorização judicial, nos termos da Lei n. 9.296/96.
7. Prova emprestada em processos não criminais
A interceptação telefônica, segundo a Constituição Federal, só pode ser autorizada para fins de investigação criminal ou instrução processual penal. No entanto, surge a questão: uma vez produzida licitamente no processo penal, essa prova pode ser utilizada em outros tipos de processo, como administrativos ou cíveis?
É admitido o uso de interceptações telefônicas como prova emprestada em processos administrativos disciplinares, desde que:
a interceptação tenha sido autorizada judicialmente para fins de investigação criminal;
sejam respeitados o contraditório e a ampla defesa no processo de destino;
a prova seja relevante e necessária para o processo de destino.
Conclusão
A interceptação telefônica representa um instrumento valioso para a investigação criminal, mas sua utilização deve sempre observar os estritos limites constitucionais e legais. O equilíbrio entre a eficácia da persecução penal e a proteção dos direitos fundamentais constitui o grande desafio na aplicação desse meio de obtenção de prova.
As situações inusitadas analisadas neste artigo demonstram a complexidade do tema e a necessidade de análise casuística. A jurisprudência tem evoluído para estabelecer parâmetros mais claros, mas ainda há zonas cinzentas que demandam cuidadosa interpretação jurídica.
O fenômeno da serendipidade (encontro fortuito de provas) e o estabelecimento dos limites para sua admissibilidade é um dos pontos mais desafiadores nesse campo. Da mesma forma, a tipificação penal da interceptação ilegal reforça a importância do respeito às formalidades legais, não apenas para a validade da prova, mas também para evitar a responsabilização criminal dos agentes envolvidos.
É fundamental que os operadores do direito, em especial advogados, promotores e magistrados, compreendam as nuances que envolvem a interceptação telefônica e demais formas de captação de comunicações, evitando tanto a impunidade quanto o abuso estatal.
Por fim, cabe ao cidadão conhecer seus direitos e as hipóteses excepcionais em que eles podem ser legitimamente restringidos, fortalecendo assim o Estado Democrático de Direito e a segurança jurídica em nossa sociedade.










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