Juventude em Julgamento: Série "Adolescência" e a Responsabilidade dos Adolescentes
- Eduardo Onofri Pallota
- 31 de mar.
- 4 min de leitura
Atualizado: 1 de abr.

A série Adolescência, recentemente lançada pelo programa de streaming Netflix, tem provocado intensos debates sobre como a sociedade brasileira lida com jovens que cometem atos graves e também como devemos ficar de olho nos comportamentos dos adolescentes nas redes sociais. Através de uma narrativa impactante, a produção expõe as complexidades do sistema socioeducativo e as nuances da responsabilização de adolescentes envolvidos em crimes graves.
Observação: essa minissérie é composta de 04 episódios, foi a mais assistida em 71 países (incluindo o Brasil) e foi gravada sem cortes. Com relação à audiência, alcançou 6,4 milhões de britânicos no primeiro episódio, além de já ter acumulado mais de 66,3 milhões de espectadores, tornando-se a mais vista da história do Netflix.
Este cenário ficcional, porém realista, nos convida a uma reflexão profunda: como o ordenamento jurídico brasileiro responsabiliza adolescentes que cometem atos infracionais graves? Quais os limites e possibilidades das medidas socioeducativas? E como fatores externos, como família e redes sociais, impactam o comportamento desses jovens?
A Distinção Fundamental: Atos Infracionais vs. Crimes
No Brasil, existe uma distinção jurídica essencial que muitos desconhecem: adolescentes não cometem "crimes", mas sim "atos infracionais", os quais, de acordo com o art. 103, Lei n. 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA), são as condutas descritas como crime ou contravenção penal. Por isso, é comum usarmos a expressão "ato infracional equiparado a... (nome da infração penal)".
Essa diferenciação não é meramente semântica, mas reflete toda uma concepção constitucional e legal sobre a responsabilização de pessoas em desenvolvimento.
O Princípio da Inimputabilidade Penal
O artigo 228 da Constituição Federal estabelece que "são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial". Este dispositivo é complementado pelo artigo 104 do ECA que reafirma a inimputabilidade penal dos menores de 18 anos.
Isso significa que, diferentemente dos adultos, os adolescentes não estão sujeitos ao Código Penal e suas penas, mas sim a um sistema especial de responsabilização que leva em conta sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Há ainda uma diferença de tratamento entre as crianças (até 12 anos incompletos) e adolescentes (12 anos completos até 18 anos incompletos).
Série "Adolescência" e a Responsabilidade dos Adolescentes
Quando um adulto comete um crime, ele pode ser condenado a penas de até 40 anos de reclusão. Já um adolescente que comete um ato infracional análogo a um crime grave, como homicídio, está sujeito a medidas socioeducativas que terão duração máxima de 3 anos, com reavaliação a cada 6 meses, ao passo que as crianças não podem sofrer a medida de internação, segundo os arts. 101 e 105, ambos do ECA; a elas serão aplicadas medidas de proteção.
Esta diferença substancial gera intensos debates na sociedade, especialmente quando casos graves ganham repercussão nacional. Na série "Adolescência", vemos exatamente este tipo de tensão social, quando a comunidade se divide entre apoiar um sistema mais rigoroso de punição ou defender a abordagem socioeducativa.
As Medidas Socioeducativas: Entre a Teoria e a Prática
O ECA prevê seis tipos de medidas socioeducativas para adolescentes que cometem atos infracionais:
Advertência
Obrigação de reparar o dano
Prestação de serviços à comunidade
Liberdade assistida
Inserção em regime de semiliberdade
Internação em estabelecimento educacional
A Medida de Internação: Eficácia e Desafios
A internação, medida mais severa prevista pelo ECA, é reservada para casos de:
Ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa
Reiteração no cometimento de outras infrações graves
Descumprimento reiterado e injustificável de medida anteriormente imposta
A Realidade das Unidades de Internação
Um dos aspectos mais pungentes da série Adolescência é a representação das unidades de internação.
A realidade brasileira apresenta instituições superlotadas, com estrutura precária e equipes técnicas insuficientes. Muitas unidades de internação mais se assemelham a presídios do que a estabelecimentos educacionais, contrariando a própria essência do ECA. Esta realidade compromete gravemente o caráter pedagógico das medidas socioeducativas.
A Influência do Ambiente Digital e Familiar
A série Adolescência acerta ao retratar como o ambiente familiar e as redes sociais influenciam decisivamente o comportamento dos adolescentes em conflito com a lei.
As redes sociais potencializam comportamentos de risco entre adolescentes através de:
Exposição a conteúdos violentos
Pressão por status e aprovação social
Romantização de condutas criminosas
Formação de grupos virtuais com interesses antissociais
Na série, vemos claramente como determinadas plataformas digitais acabam servindo de catalisador para comportamentos desviantes, seja pela busca de visibilidade, seja pela influência de conteúdos que glamourizam a violência.
O Contexto Familiar
A dinâmica familiar é outro fator determinante abordado na produção. É possível constatar que:
adolescentes de famílias desestruturadas têm maior propensão a condutas infracionais
a ausência de figuras de autoridade compromete o desenvolvimento de limites sociais
ambientes familiares violentos tendem a reproduzir ciclos de violência
a negligência afetiva e material aumenta a vulnerabilidade social do adolescente
Na série, personagens centrais refletem estas realidades, mostrando como diferentes configurações familiares podem influenciar positiva ou negativamente as escolhas dos adolescentes.
Caminhos para um Sistema mais Eficaz
Diante das complexidades apresentadas, alguns caminhos parecem promissores para aprimorar o sistema socioeducativo brasileiro:
Investimento em prevenção: políticas públicas focadas em educação, cultura e esporte para adolescentes em áreas vulneráveis.
Fortalecimento das medidas em meio aberto: liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade bem estruturadas podem ser mais eficazes que a internação.
Humanização das unidades de internação: transformação efetiva destes espaços em ambientes educacionais, não punitivos.
Acompanhamento pós-medida: criação de programas eficientes para a reintegração social do adolescente após o cumprimento da medida socioeducativa.
Abordagem multidisciplinar: integração entre Justiça, assistência social, educação e saúde mental no atendimento aos adolescentes.
Conclusão
A série Adolescência e a responsabilidade dos adolescentes tem o mérito de levantar um tema complexo e muitas vezes simplificado no debate público. Entre o clamor por punições mais severas e a defesa intransigente do atual sistema, existe um amplo espaço para reflexões maduras sobre como a sociedade brasileira pode lidar com adolescentes que cometem atos infracionais graves.
O sistema socioeducativo brasileiro, embora avançado em sua concepção teórica, enfrenta graves problemas estruturais que comprometem sua eficácia. Reconhecer essas falhas é o primeiro passo para construir um sistema que realmente cumpra sua dupla função: responsabilizar adequadamente os adolescentes e oferecer oportunidades reais de transformação.
Fonte: Constituição Federal, Lei n. 8.069/90 (ECA) e Adolescência (produção: Netflix).










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